Dizendo oi ao outono...
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outono estava chegando, já podia se sentir o
vento fresco arrefecer a sua face. O dia começa a ser mais curto, às cinco da
tarde o sol caminhava misteriosamente para seu horizonte a se esconder. Suas
primeiras blusas de linho eram pouco a pouco retiradas do fundo do guarda-roupas.
A janela do quarto permanecia aberta ao dormir, mas agora se encolhia numa
manta sedutora e gentil que amaciava inclusive suas piores noites. Na volta
para casa, pegou um café expresso na padaria e aproveitou o ar arejado do
outono póstero para saborear a bebida quente e interromper as acrimônias da
vida por certo instante.
Mas a rispidez voltara logo, com o primeiro sinal
de arrogância de sujeitos ao desenrolar de seus passos pelo calçadão do pequeno
vilarejo. Nem era tão pequeno assim. Ela inclusive pensava que havia gentes
demais. E se lembrava da parcimônia generalizada de quando era criança e corria
de braços em braços dos adultos que se encantavam com sua tagarelice ao redor
de suas gordas bochechas, de suas perninhas rechonchudas e pezinhos tortos.
Por vezes, até mesmo pessoas indesejáveis a tomaram
pelos braços e rodopiaram com ela pelas ruas da velha cidade cafeeira. Mas o
que importava era que no final do dia estava lá, com seus pais, admirando os
primeiros deuses que conhecera em vida.
Seu pai ensinou a ela como jogar dama, xadrez e
gamão. Também a convenceu a ficar longe de jogatinas, e passar a quilômetros de
distância de qualquer cassino em Las Vegas, mesmo que tivesse a maior quantia
em dinheiro do mundo. Ela até que se fazia boa jogadora, sabia perder. Ou como
dizia o pai, “és uma boa perdedora!”. Mas das poucas vezes que ganhava,
surpreendia-se com os golpes que dava no adversário: rastelava as peças de modo
a não ter reparo.
Mas ela não conseguiu mais ter sonhos, tampouco
conseguia se distrair ao caminhar pelas ruas. Em meio à intolerância civil, à
guerra cibernética, à guerra da Crimeia e de Kiev, à pandemia do Covid, aos
olhos vedados do mundo angustiado, seus pesadelos se tratavam da rispidez
excepcional do ser humano. Nada na história era tão assustador quanto a
incomplacência demasiadamente inflexível do momento. Como se os espíritos do
homem cuspissem o fogo diabólico do ódio.
Dessa forma, não havia nela um passado bom, por
mais que fosse bom. Pois havia de se beber tanto café para as acrimônias, e
havia de se proteger tão fortemente contra as mentes de juízo satanista, que
pensar num mundo bom para ela, dava-lhe a sensação de ser roubada por morcegos
sugadores de sonhos, aqueles enlaçados sob fantasias intrincadas na forma de
pessoas empipocadas no mundo.
Mas o outono era uma nova esperança. Mesmo que não
tivesse sonhos, mesmo que fechasse os olhos e ouvisse apenas barulhos do
inconsciente humano revolto e tempestuoso, a própria presença do outono era um
grande presente. No tempo de sopro frescor na face fatigada, o momento de estar
já era um sonho muito bom. Era assim que ela vivia o pesadelo da era
contemporânea, sempre em busca da vivacidade da aura fresca do outono, ou de
uma manhã gelada cheia de gelo no inverno. Naquele sol abaixo do Equador, ela
sobrevivia na maior parte do tempo para dar verdadeira sobrevida à vida por um
curto período do ano. A única coisa com o que podia sonhar sem ser acordada
pelo marasmo apocalíptico do novo tempo era com um campo gelado, um pesado
casaco de frio e uma toca de lã grossa protegendo sua cabeça do vento gélido.
Ela no íntimo aguentara até ali porque sabia que este lugar existia em vida.
Ela sabia que o chão que havia em sua terra havia nos gelos também, e que por
isso poderia chegar lá. Enquanto isso, fechava os olhos nos dias bem frescos da
sua velha cidade e desejava que o café do copo fosse infinito, que o anoitecer
não acabasse e que nem o outono e o inverno chegassem tímidos naquele
ano.