quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Nas profundezas do rio

 

 

O vazio que me deixaram. Necessidade do perdão e da gratidão. Por que se vive? Por que é difícil perdoar? Sentei-me à beira do rio, naquele banco encardido pelo tempo, fiquei a observar a água clara e a correnteza que levava tudo adiante. Como se não sentisse culpa ou pesar, ele corria banho afora, numa destreza esperta e invejável. Passava sob a ponte e de repente as águas que havíamos visto já nem estavam mais ali, haviam se escorrido diante de uma perspectiva hercúlea de jamais voltar à pedra passada, à ponte que passou, à mata que deixou. O vento gelado balançava meus cabelos compridos, o casaco de tricô de cor verde-árvore me deixava calorosa frente ao frio da brisa e da vida. Uma obscura onda de sentimentos mal processados dentro de mim tomou espaço no meu coração e meus olhos choraram uma solidão inescusável, sim, eu estava sozinha, perpetuada em um grande vazio branco, de onde se sente a ausência de tudo. Chorei soluçando uma angústia deslavada, sem ao menos pensar que poderia chegar alguém e presenciar a fraqueza das minhas acrimônias. Não havia nenhum conforto, minha alma se sentia despovoada, como se num retiro em um deserto, não havia consolo, não haviam afagos, um colo ou um resguardo sem cheiro de remédio. Eu estava sozinha e dilacerada em dores. Aquele vazio que me deixaram... Por que era tão difícil esquecer? Por que o abandono me fazia ter raivas e amarguras tão penduradas em meu pescoço que eu até andava curvada da coluna? Por que eu relutava em perdoar e voltava sempre às mesmas angústias, à mesma ébria dor de ter sido deixada de lado como se fosse uma boneca esquecida por uma jovem adolescente? Olhei para o rio e desejei ser ele, desejei ser toda aquela água imensa e certeira, que não titubeava frente ao passado, que corria e escorria mundo à frente, contente em sempre seguir adiante. Por que viver era uma obra tão rebuscada, tão repleta de travas escusas, por que a visão dos olhos era tão nevoenta? As brumas do oculto significado da vida levava tanto tempo para apreender que quando se pegava, nada mais fazia algum sentido. O certo era ser como o rio, mas eu era humana na sua forma mais primitiva e simplória do ego, o certo era ser rio, mas o que eu podia fazer? Parei com o choro espalhado, sequei as lágrimas e me aproximei. E se eu me fosse com toda a correnteza? Eu seria rio também? Mas o ser humano jamais poderia ser o rio, afastei-me cautelosamente e pensei que, mesmo rodeada de abandono e solidão, mesmo sem ter alguém no mundo para me abraçar e dizer que alguma coisa ficaria bem, a obra rebuscada da vida requeria imensa seriedade. Essa vida não era brincadeira, tudo teria que ser levado muito a sério, e embora sozinha, solitária, esquisita e sôfrega, havia um lastro que me alicerçava, era o banco encardido da margem do rio, era meu casaco de tricô verde-árvore, eram meus cabelos compridos, o vento no rosto, o cachorro que latia, o carro à minha espera, os ponteiros do relógio que trabalhavam sem diáspora, o computador que se ajeitava ao meu toque, os travesseiros acolhedores para um final de dia. Pensando assim, eu fui como o rio, entrei no carro e segui adiante. O trabalho que me esperava, o gatinho adotado, o relógio de brilhantes conquistado, o novo corte de cabelo, os quilos mais magros. A neblina parca do meu exílio em espírito ainda cravava em mim. mas não deixei de achar que eu era o rio, mas o rio não tinha sorrisos, nem gargalhadas, nem café com pão de queijo. Eu pensaria que mesmo assim, envolta a um desgostoso amargor negro da solidão, das perdas e das angústias, da inquietude e da desolação, eu sabia que eu não poderia ser o rio, mas eu persistiria, e tentaria todas as vezes em que o tijolo pesado do desconsolo que habitava meu vácuo despejasse a tristeza e o vazio dentro de mim. Eu tentaria ser o rio, mesmo que as acrimônias me carregassem rio acima, eu faria um esforço maior para me escorrer rio abaixo. E depois, olharia tudo o que envolvesse sentir ou tocar, e agradeceria do fundo do peito que, melhor que ser rio e escorrer, era poder caminhar para esquecer, para sentir, para ter ternura, para respirar fundo, para correr e abraçar, para atravessar a rua, para olhar em volta, porque o rio corre, mas a gente, a gente vive.  





                                             
 

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