Dragão de escamas verdes e olhos amarelados chorava desespero e seu suor de medo exalando covardia me deixou irritada.
Por que choras, dragão das neves?
Porque há guerras.
E foi você que fez isso?
Não, de jeito nenhum.
O que você pode fazer para ajudar uma
população entorpecida e surtada em pânicos, exaustão e ódio?
Viver mais mil anos adormecido.
Não gostaria disso? De acordar num mundo
melhor sem ter que ver tantos sofrimentos que não fori você o artista de toda essa
obra escalafobética e irritante de gente que fede a inferno e percorre os
quatro cantos da terra para encontrar um botão vermelho dos ortodoxos russos?
Você, dragão de escamas verdes e olhos
amarelados, pinte seu rosto de vermelho, desenhe formas de raízes pretas em
toda a face, se cobre com uma pele de carneiro, deite no relento perto de uma
fogueira que estala as serragens. Tatue na sua pele os símbolos e as cores da
sua própria guerra, ande descalço na areia e faça anjos na neve. Acenda velas,
incensos em sua volta, coloque canela, acrescente arruda e sal grosso, use
ervas xamãs. Ouça o som do vento de sua solidão, logo perceberá que seu coração
tem a batida feroz como um tambor celta de ritos mágicos. Fixe seu olho direito
no espelho e só sai dali quando souber que ter um, dois ou três olhos, no final
das contas, é quase a mesma sensação dos sentidos. Da morte de uma vala me
livrei, dragão, quando eu tinha dois anos, terroristas vestidos de carneiros
marrons me tiraram do leite materno, torturaram e estupraram minha mãe, ela
pedia em desespero, “filha, não olhe, filha, não olhe”... Enquanto um carneiro
marrom virava meu rostinho para ela, eu chorava quando via sua cara esfolada,
sangrando, arroxeando. O carneiro era esquisito, porque ele ria com isso. Nunca
mais vi minha princesa, uma mãe novinha, cheia de conhecimento de vida e da
amor para me carregar para o resto das nossas vidas.. Amassavam meus pés
enquanto eu estava em choque e não reagia e não chorava. Torturavam meus olhinhos
com uma agulha para que eu aprendesse a não ter reação, a não piscar e a não
sentir medo. Me bateram, me deixaram suja, cheia de piolhos num cabelo clarinho
e lisinho de bebê que só tinha a mãe como referência no mundo. LF foi recrutado
para me levar na vala, não era levar exatamente, era jogar abaixo. LF me olhou
e fugiu com o coração do pequeno bambi ainda batendo. Sob juramentos e ameaça
de morte, meus pais nunca puderam me revelar um segredo tão fundamental para a
vida de uma mulher. Asknazi menininha que era, fui criada por uma família de
coração Sefaradi, da linhagem de Davi, do último rei da disnastia quando o
califado invadiu Israel e nos expulsou. Quero dizer, expulsaram minha família
de coração, a minha família que percorre nas veias vieram do holocausto da
segunda guerra. Conheci pouco, até assassinarem minha mãe e me tentarem jogar
na vala da presença dos ausentes. Hoje não sei minha idade ao certo, trinta e
poucos, não tenho documentação, não sei meu nome ao certo, minha mãe nunca me
chamava pelo meu nome e ela não queria que eu soubesse o dela. Minha família de
coração foi obrigada a ficar comigo, ou ficava ou me matavam. Se fica, é
segredo oficial do doi-codi, se fala, todos morrem. Enfim, é isso, dragão de
escamas verdes e olhos amarelados. Apesar da nossa vida ter sido imensamente
cruel, sempre fomos nocauteados a vida toda por agentes com pele de carneio
marrom, minha mãe me ensinou os cantos dos pássaros, me pai me ensinou a andar
de cabeça erguida, e minha irmã é uma das minhas melhores amigas. Sabe, dragão verde,
faça seu xamanismo nas neves, na praia, numa ilha do Triângulo das Bermudas. É
assim mesmo, enquanto a guerra não acaba, nós vivemos cotidianamente em estado
depressivo e de alerta. Mas se deve ter coragem, pessoas que aceitam uma guerra
não pensam em sua prole ou em como defende-la do frio, da falta de aquecimento,
da falta de mantimentos. Quando algo desse tipo acontece, se balança a cabeça e
se planejam viagens para daqui a dez anos. A aceitação muitas vezes nos faz bem
melhor do que o perdão. Ninguém é obrigado a perdoar, mas agradecer pelo sol
que nasce e dormir num travesseiro sem culpas de quem matou mulheres e
crianças, de quem torturou crianças e jovens, só de sermos vítimas no mundo, já
é um bom motivo para ser feliz. Sei que é difícil ser a vítima, isso dói, mas
ser o agressor, deixa o coração cheirando a podridão negra e embaçada que nem
mesmo os urubus chegam perto.”
Dragão de escamas verdes abriu os
olhinhos como um cachorrinho pede afago. Ele abaixou a cabeça com aqueles
dentes grandes e pontudos. Eu num toque suave levantei seu rosto e disse a ele
que jamais teríamos culpa de quem passa fome numa guerra.
“Você deve conhecer os tabuleiros do xadrez
da vida mais ainda do que o tabuleiro do próprio jogo de xadrez. Eu por
exemplo, cabeça de miolo de pão com TDH pisco e levo um xeque. Mas oras, nesse tal de xadrez da
vida, eu agarro meu cajado de aço cromado em platina, quebro todo ele, construo
todo ele de novo, para que jamais me tirem o lugar do bispo que eu escolhi nos
tabuleiros reais das nossas histórias.