O vazio que me deixaram.
Necessidade do perdão e da gratidão. Por que se vive? Por que é difícil
perdoar? Sentei-me à beira do rio, naquele banco encardido pelo tempo, fiquei a
observar a água clara e a correnteza que levava tudo adiante. Como se não sentisse
culpa ou pesar, ele corria banho afora, numa destreza esperta e invejável.
Passava sob a ponte e de repente as águas que havíamos visto já nem estavam
mais ali, haviam se escorrido diante de uma perspectiva hercúlea de jamais
voltar à pedra passada, à ponte que passou, à mata que deixou. O vento gelado
balançava meus cabelos compridos, o casaco de tricô de cor verde-árvore me
deixava calorosa frente ao frio da brisa e da vida. Uma obscura onda de
sentimentos mal processados dentro de mim tomou espaço no meu coração e meus
olhos choraram uma solidão inescusável, sim, eu estava sozinha, perpetuada em
um grande vazio branco, de onde se sente a ausência de tudo. Chorei soluçando
uma angústia deslavada, sem ao menos pensar que poderia chegar alguém e presenciar
a fraqueza das minhas acrimônias. Não havia nenhum conforto, minha alma se
sentia despovoada, como se num retiro em um deserto, não havia consolo, não
haviam afagos, um colo ou um resguardo sem cheiro de remédio. Eu estava sozinha
e dilacerada em dores. Aquele vazio que me deixaram... Por que era tão difícil
esquecer? Por que o abandono me fazia ter raivas e amarguras tão penduradas em
meu pescoço que eu até andava curvada da coluna? Por que eu relutava em perdoar
e voltava sempre às mesmas angústias, à mesma ébria dor de ter sido deixada de
lado como se fosse uma boneca esquecida por uma jovem adolescente? Olhei para o
rio e desejei ser ele, desejei ser toda aquela água imensa e certeira, que não
titubeava frente ao passado, que corria e escorria mundo à frente, contente em
sempre seguir adiante. Por que viver era uma obra tão rebuscada, tão repleta de
travas escusas, por que a visão dos olhos era tão nevoenta? As brumas do oculto
significado da vida levava tanto tempo para apreender que quando se pegava,
nada mais fazia algum sentido. O certo era ser como o rio, mas eu era humana na
sua forma mais primitiva e simplória do ego, o certo era ser rio, mas o que eu
podia fazer? Parei com o choro espalhado, sequei as lágrimas e me aproximei. E
se eu me fosse com toda a correnteza? Eu seria rio também? Mas o ser humano
jamais poderia ser o rio, afastei-me cautelosamente e pensei que, mesmo rodeada
de abandono e solidão, mesmo sem ter alguém no mundo para me abraçar e dizer
que alguma coisa ficaria bem, a obra rebuscada da vida requeria imensa
seriedade. Essa vida não era brincadeira, tudo teria que ser levado muito a
sério, e embora sozinha, solitária, esquisita e sôfrega, havia um lastro que me
alicerçava, era o banco encardido da margem do rio, era meu casaco de tricô
verde-árvore, eram meus cabelos compridos, o vento no rosto, o cachorro que
latia, o carro à minha espera, os ponteiros do relógio que trabalhavam sem
diáspora, o computador que se ajeitava ao meu toque, os travesseiros
acolhedores para um final de dia. Pensando assim, eu fui como o rio, entrei no
carro e segui adiante. O trabalho que me esperava, o gatinho adotado, o relógio
de brilhantes conquistado, o novo corte de cabelo, os quilos mais magros. A
neblina parca do meu exílio em espírito ainda cravava em mim. mas não deixei de
achar que eu era o rio, mas o rio não tinha sorrisos, nem gargalhadas, nem café
com pão de queijo. Eu pensaria que mesmo assim, envolta a um desgostoso amargor
negro da solidão, das perdas e das angústias, da inquietude e da desolação, eu
sabia que eu não poderia ser o rio, mas eu persistiria, e tentaria todas as
vezes em que o tijolo pesado do desconsolo que habitava meu vácuo despejasse a
tristeza e o vazio dentro de mim. Eu tentaria ser o rio, mesmo que as
acrimônias me carregassem rio acima, eu faria um esforço maior para me escorrer
rio abaixo. E depois, olharia tudo o que envolvesse sentir ou tocar, e
agradeceria do fundo do peito que, melhor que ser rio e escorrer, era poder
caminhar para esquecer, para sentir, para ter ternura, para respirar fundo,
para correr e abraçar, para atravessar a rua, para olhar em volta, porque o rio
corre, mas a gente, a gente vive.
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