quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

O quanto se pode julgar

 

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Tatu-bola, bode e bode expiatório

Vou contar uma história, a do tatu de estimação que eu tive quando criança. Era um tatu-bola filhote, chegando com meu pai, no frio do sul latino, aquele gelo na ponta do nariz, um cachecol até à boca, blusas de lã, meia-calça e duas calças de moletom. Eu estava com um moletom com os punhos dos pés cortados, porque algum amigo tinha enfiado a tesoura nas canelas da calça em um aniversário com muita coca-cola, ele devia ter ficado um tanto... animado.

Lembro que meu pai estava com uma camisa xadrez de flanela em tons verdes, boné cinza e rosto barbudo, chegou com os olhos arregalados e surpresos, rindo de alegria. Olha só, meninas! Olhem o que eu trouxe pra vocês conhecerem, um tatu!

Achamos que era brincadeira do meu pai, ele havia enrolado o tatu num saco de estopa, e nos disse, ele é selvagem, então é perigoso, cuidado com suas unhas, meninas! Colocou-o no chão e minha irmã e eu começamos a saltear no quintal de terra.

Um tatu, um tatu! Ah que legal! Pai, podemos ficar com ele? Que lindo! Que fofinho! Olha o casco dele! Uau! É duro, uma cascona! Pai, deixa a gente ficar com ele, a gente cuida, por favor, sim?!

Meu pai não titubeou em dizer, ele não é de estimação, não tem como cuidar dele, é um tatu, ele gosta de ser livre.

A gente tenta, pai. Vamos fazer um trato! Se o tatu gostar, ele fica por conta própria.

Tudo bem. Disse meu pai.

Noutro dia, fomos para fora de manhã e havia muitos lugares cavados. Minha irmã e eu ficamos em desespero.

O tatu fugiu, pai! Deve estar perdido! Indagamos.

Tudo bem, filhas, deixem o tatu, se eu o achar, levo para a mãe dele, tá bom.

Quando saímos para a rua mais tarde, encontramos o tatu num gramado meia quadra ao lado. Pegamo-lo, sim, pegamos o tatu na mão. Levamos para a casa.

O tatu vai fugir de novo...goraram os adultos.

Dessa vez não. Temos um plano. Vamos dar uma casa pra ele. E o colocamos no quarto dos fundos.

O tatu! Vamos vê-lo logo! Minha irmã e eu corremos em direção ao novo aposento do tatu-bola. Mas o tatu havia fugido. Ele havia cavado um buraco no cimento, cavou a parede, o cimento do chão, e saiu túnel abaixo. Devia estar desesperado.

Fico pensando hoje, com muito peso na consciência de ter feito de um tatu-bola, meu bicho de estimação por dois dias. Para ele deve ter sido uma sensação de risco de vida profundo.

Sinto muito se maltratei um tatu-bola quando criança. Um bichinho desse vive aproximadamente quinze anos. Já faz trinta, então ele deve estar no céu dos animais selvagens.

Eu sinceramente, gostaria que ele me ouvisse hoje, nessas palavras, e que me desculpasse pela minha teimosia.

De todas as histórias que ouço, já ouvi até minhas amigas falando que o pai teve um leão, o outro que tinha coelhos, galinhas d´angola (é trend agora), as pessoas podem ter pôneis (até chegar a falência do pai), inclusive búfalos, tudo normal. Mas ninguém que conheço teve um tatu. Eu tive um tatu.

Tatus são espontâneos, sua natureza é cavar, assim como os ratos precisam roer para que seus dentes não cresçam demais, assim como os pássaros cantam na gaiola para se distraírem e sobreviver ao presídio. Já o bode, ele não cava.

O bode come plantas, gramas, matos, folhas, flores...ele sobe montanhas e consegue viver em altas altitudes. São criaturas dóceis, gostam da presença de outros animais, inclusive a dos homens. As cabras, além de dar leite e queijo, são farejadoras e extremamente intuitivas para encontrar alimentos.

Também existem os bodes traiçoeiros, esse tipo chega perto e, por alguma expressão no rosto ou gestos da pessoa, ele a persegue e a derruba com cabeçadas.

A outra questão é que, se o bode estiver na forma de um ser humano, pode se tornar um bode expiatório (não o do Levíticos, em cerimônia judaica)...O bode expiatório no português brasileiro, quero dizer, na língua brasileira. É quando um indivíduo não consegue provar sua inocência, mesmo sem ser o responsável direto pelos crimes. É aquele que leva toda culpa sozinho pelo infortúnio, mesmo não estando sozinho.

O bode expiatório da questão está sozinho? Há alguma onda reviver da burocracia de guerra, entre ideologias e poder em crise? Por que o poder estaria em crise?

Na ignorância e no desprezo, há de julgar o bode que trai e que em tudo dá cabeçadas. E o nosso tatu-bola, que cava até cimento. Este seria o maior exemplo determinista e comportamental de tatu-bola e bode.

O quanto se pode julgar de um bode que, o que se planta, come, e se assenta na sua própria grama. Ou o tatu-bola, desesperado, que cava até a dureza das pedras em angústia indagativa por direitos naturais de quem quer que seja.

Aqui se tratou do tatu-bola, amanhã pode ser o bode, o Simba Safári, o leão preto...eu sinceramente quero que, no dia seguinte, não haja nathy tentando domesticar um filhote de tatu, tampouco julgamentos de crimes de guerra, pessoas lutando pela liberdade de reféns, hospitais feitos de lares doces lares de terroristas, notícias de soldados mortos, comida e água racionados, ONU em prantos...

Eu quero um amanhã que eu veja o tatu-bola voltando à sua floresta, o bode no topo da montanha, à alta altitude, e o céu brilhando um dourado paraíso, como se eu não precisasse mais escrever sobre ódio e guerra.

Como se meu tatu-bola de estimação criasse asas em uma alma aureolada e dissesse: um dia, todo mundo se torna livre, mesmo que demore dois dias infinitos, esses dois dias também se acabam uma hora ou outra...

 


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