Numa noite quente de ventania gelada, no ano novo a chegar a
um mês, com pessoas e amigos queridos, pais, pais, mãe, choro e toda a família
mais que completa. E eu agradecendo pelos saltos altos confortáveis e pela
música clássica galanteada por violinos e pela harpa no auditório.
Estava tudo em Claredon... Eu estava querendo muito uma
noite hercúlea como esta. Escolhi uma típica música virtuosa de técnica russa
do glorioso compositor e esplêndido russo Tchaikovsky em homenagem a nós, que
dia ou outro estamos sempre colhendo algum pólen para semear em páginas que
encontramos brancas.
Era à noite e sonhei que eu vivia num castelo celta e era sacerdotisa.
Havia um cachorro adestrado muito carinhoso e bonzinho, eu me deitava no salão e
brincava com ele, às vezes me assustava com seu latido forte. O castelo era
enorme, de piso de pedras grandes, eu tinha várias relíquias, como broches,
perfumes, vestidos, elixires, poções fluorescentes, pós coloridos e
cintilantes, joias, ervas raras, venenos, remédios, tudo ali me cercava ao
total e completo ocultismo da luz e das sombras. Mas houve um episódio em que
eu estava na vila e um cavaleiro rude e caçador de bruxas estava parado com os
seus. E começou a mexer comigo e a dizer palavrões na língua saxônica. Ele
disse, olha só a nobreza do castelo, como está o rei, e falou mal da
nobreza, eu desconversei, começou a falar obscenidades em saxão e eu saí,
continuei andando pela vila e o clima no vilarejo era maravilhoso, havia um ar
de mistério misturado a um bem estar.
Quando acordei, percebi que havia de ir novamente àquele
banco para buscar o malote do depósito para a conta da autarquia. Dei uma
murchada naquela hora pois me lembrei de que eu teria então, que me encontrar
na ida e na volta com o gerente e ele costumava dar uma piscadela de olho pra mim,
mesmo usando uma aliança douradona gigantesca na mão esquerda.
Ao invés de me sentir intimidada com o seu olhar despindo
minha roupa de frio naquele verão gelado, olhei diretamente na mão esquerda
dele, bufei, fiz um bico, levantei a cabeça, acenei para o casal de seguranças
do lado oposto e saí pela porta giratória olhando para o oposto de onde aquele
ser mínguo, minguante e vagabundo estava. Depois daquele dia eu jamais fui a
mesma novamente, até que decidi que aquilo não tomaria mais conta do meu presente
momento, passei a olhar as entrelinhas de azia da vida como situações com
oportunidades de crescimento.
Então olhei para mim mesma com compaixão, sem ter aquela voz
condenadora para os meus erros ou para os dos outros. Em outros laços de
tempos, as pessoas as quais eu pensava significar alguma coisa para mim se
tornaram cada dia mais insignificantes, nem me lembrava certamente seus rostos
exatos ou seus sobrenomes, que também eram insignificantes tendo em vista a
vastidão de sobrenomes enriquecedores com os quais eu já estava convivendo ao
longo de minha jornada entre São Paulo, Europa, Oriente Médio, Seatle e Ásia. Mesmo
que meu dinheiro não significasse nada para eles, pois uma coisa eu aprendi na
vida, saiba ser humilde sê rico, pois há sempre um maior à sua frente. Eu
sempre fui enriquecida com cultura e experiência que iam além de se atolar de
bebidas alcoólicas ou fazer uma piada a la caipirosca pretendida de
preconceitos e ofensas, completamente desqualificada. E os restos mortais de
outros haviam ficado cegos por quebrar uma garrafa de cerveja para usar o fundo
como óculos, ou se auto empalaram em quaisquer das lanças imensas arremessadas
pelas revoluções armadas ao interior do país, quiçá caíram em algum fundo de
lona, ou se viciaram em ácidos lisérgicos, anfetamina, ou em vodka russa feita
com puro álcool pelos sem teto no frio da família Romanov.
Depois das auto autoridades lançadas em forma de penalidade,
de vigiar e punir, de tanto que havia lido e relido Foucault para o trabalho
final de conclusão de curso, durante toda a faculdade de antropologia e ciência
política fiquei confusa e pesada, e pude perceber que finalmente, quase uma
década depois eu estava me reorientando na minha própria sociedade organizada,
que havia desparecido de tanto descascar camadas e mais camadas de cebolas
sociais, percebi o que era bem-estar e plenitude, e aproveitei o doce e suave
sabor da flor da macieira que é chegada em dezembro.
Já não mais me ensaiava àquela fadada vida insossa, àquele
emprego enfadonho, cheio de dissabores, desamores, anarquia burocrática e
imoralidade do sujo e do imundo.
A mulher que me recebeu foi tão generosa que saí do prédio com
ar de flutuação, ao passar pelo jardim à frente, fui pisoteando cada casca de
semente caída pelo verão com frio, pelo qual estávamos passando. Ao entrar no
carro eu pensei, quando estiver em um emprego melhor, sentirão falta da pessoa
que eu fui aqui dentro, essa era uma certeza da qual até então eu não tinha. E
fiquei pensando nisso a tarde toda, como se um apoio para as mesmices pelas
quais eu passava naqueles dias.
E eu tinha toda razão, como sempre costumava ter, desde
criança. Um mês depois de me relocar em outro prédio público, o ex-gerente me
queria de volta. Quando ouvi a diretora com ele em áudios eu paralisei e fechei
os punhos, saí andando tranquila para pegar café quando ouvi algo assim,
procura outra pessoa por aqui ela é fundamental pra gente e daqui ela não sai.
Agora era questão de uns dias, semanas, ou talvez mais e
mais algumas semanas para que a família toda estivesse realmente se totalizando
em todos nós, pais, pais, pais, pais, pais, mãe, choro, amigos, amigas, irmãs,
primos, sobrinhos, lençol branco, gato, cachorro, bengal, wippet, Samantha e
Frigg, vestidos novos de alfaiataria e bolhinhas brilhantes de oxigênio a se perderem
na atmosfera terrestre....ah, como eu me sentia importante nos dias em que
podia enxergar as minúsculas bolhas de oxigênio se desfazendo e refazendo no ar
em milésimos de segundos. Eu já havia encontrado minha bengal pela metade do
preço, bem perto de casa, estava preparando um novo bairro mais plano no qual
eu pudesse andar com a Frigg de manhã e à noite, quando chegasse do trabalho. Comecei
o ano comprando meu primeiro relógio de Swarovski, e terminei o ano adquirindo
um anel de ouro branco 24 kl e sete pequenas pedras de rubi no valor de onze
mil. Quatro peças de pano de linho, malha e algodão sobrepunham a cama do meu
quarto com cores felizes e sóbrias que só o cinza e o azul marinhos podem ter.
A porta havia de ficar sempre trancada na tramela e na chave, mas, todos da travessa
sabiam que no portão era dado o acesso à campainha 24 horas por dia.
":-D
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